Se até os deuses mentem, por que então devemos contar a verdade?


por Pedro


Um pai reúne todos os seus filhos para anunciar algo importante. Entre eles há meninos e meninas com idades e maturidades variadas: crianças, pré-adolescentes e jovens adultos. Ele olha ao redor como se tentasse conectar os pensamentos da forma mais justa possível, enquanto corresponde seriamente a cada olhar sincero e curioso vindo em sua direção, e então, com a voz limpa e clara, ele as dá a pior notícia que eles poderiam ter recebido naquele momento de suas vidas.

“Na noite passada, mamãe se matou. Ela, finalmente, fez isso. A mãe de vocês está morta.”

Capitão Fantástico (2016).
  
A cena do filme Capitão Fantástico, escrito e dirigido por Matt Ross – e também recomendado por mim –, recria um momento do qual desejamos nunca precisarmos passar. Não é fácil lidar com a morte de alguém próximo, mais difícil ainda é ter que explicar isso para crianças, sejam elas nossos parentes próximos ou não. E antes de mais nada, eu não tenho formação alguma ou conhecimento comportamental para falar do assunto, porém, cá estou eu para dizer apenas o que vejo – leio, assisto e absorvo da vida. Portanto, não leve nada disso com tanta seriedade.

Mas qual é a melhor opção? Dizer a verdade dura e fria ou mentir e apaziguar a situação para proteger alguém imaturo?

De um lado temos uma fantástica história de um pai criando seus filhos a sua maneira, ensinando-os a serem independentes e íntegros, e sendo o tempo todo honesto independentemente da situação ou pergunta. Mas de outro lado temos The God’s Lie – título da versão nacional –, obra de Kaori Ozaki, lançada no Brasil em 2016 pelo selo Planet Manga (Panini Comics).


Natsuro Nanao, que perdeu o pai ainda muito novo e viveu a infância apenas com sua mãe, narra uma lembrança marcante do verão dos seus 11 anos. Nela, ele conta como conheceu Rio Suzumura e como esse acontecimento foi o mais marcante de sua vida. 

Esse simples enredo abordado pode soar como um enorme clichê no universo dos mangás/animes, porém, o ponto forte é que ele não é nada do que esperamos que seja. The God’s Lie não é uma simples história de lembrança de um amor infantil em um verão alegre e quente, mas sim – sem dizer nenhum spoiler – o reflexo perfeito das consequências das mentiras que adultos contam para crianças. É trágico, cruel, impactante e real. Apenas.

Vivendo no fim de sua pré-adolescência tudo parece seguir normalmente na vida do jovem Natsuru, até que um dia ele conversa brevemente – e pela primeira vez – com Rio Suzumura. E algo nela toca-o profundamente. A menina mais alta da sala tem um ar taciturno e vive excluída das outras crianças. E isso é apenas o que sabemos dela até o momento. Enquanto Natusuro treina futebol com seus amigos diariamente e sonha em se tornar um jogador profissional. Ele tem seu técnico de futebol, o sr. Okada, como a mais próxima representação de um pai em sua vida. Até que um dia ele descobre que o sr. Okada está internado no hospital devido uma doença séria e não poderá mais ser seu técnico. Ao invés disso, um técnico mais novo assume seu lugar, e mostra-se um inferno na vida dos meninos. Ele os desmotiva o tempo todo com palavras duras e críticas insinceras, que fazem com que o garoto pouco a pouco vá se decepcionando com aquilo que tanto ama, ficando indiferente ao seu sonho.

Um dia ele encontra um filhote de gato perdido e leva-o para casa, obviamente escondendo-o de sua mãe, pois sabendo que ela é alérgica não poderia ficar com ele. Ela descobre e o manda se livrar do bichinho. Ao sair de casa ele se depara com Rio – que está acompanhada de seu irmão mais novo – pela segunda vez. Ela topa ficar com o gatinho, desde que ele pague a alimentação do animal mensalmente. Após concordar, ele acaba acompanhando-os ao supermercado, e desta vez, presencia uma garota completamente diferente. Ela mostra-se madura e inteligente, controlando o irmão e fazendo contas precisas para comprarem somente o necessário dos alimentos básicos. Uma postura que uma criança desacompanhada em um supermercado raramente conseguiria manter. Após comprarem, Natusuru se oferece para ajudar a levar as compras, e é então, que ao chegar na casa de Rio, se depara com algo que o choca: as duas crianças vivem completamente sozinhas em uma casa caindo aos pedaços. Rio diz que seu pai trabalha como pescador de caranguejos no Alasca e retorna eventualmente para deixar algum dinheiro para eles. Apesar da irresponsabilidade, isso não chega nem perto do que ainda está por vir.

Afetado profundamente, tanto com a situação de Rio e Yuuta quanto com as suas desavenças com o novo técnico, ele começa a agir de forma estranha com sua mãe, a ponto de sair de casa pronto para ir em um treinamento do time de futebol de sua escola que duraria três dias, mas ao invés disso, vagar pela cidade procurando um lugar seguro para não ter que ficar perto de seu novo técnico. E depois disso, muito mais coisas acontecem. A cada encontro de Natsuru e Rio algo profundo começa a conectá-los, seja por suas situações parecidas, ou pelos seus sentimentos de culpa por tudo que está acontecendo. Segredos são revelados e momentos chocantes são presenciados, levando a um final belo e ao mesmo tempo trágico. E tudo isso só acontece por culpa das mentiras que os deuses constantemente nos contam.

Rio, Natsuru e Yuuta.
E como deuses eu me refiro ao nossos pais. Para uma criança recém apresentada a um mundo desconhecido, tudo que ela tem são os pais como espelho e verdade absoluta: como deuses. E qual deve ser a frustração quando se descobre que esses deuses nada mais são do que mentirosos? A pior possível, logicamente. Quando somos crianças tudo é mais intenso. Hoje em dia, porém, já crescidos, podemos entender e aceitar tantas coisas que provavelmente teriam destruído todos os nossos sonhos quando mais novos. A idade faz milagres, de fato.

Facilmente podemos nos perder nas contas de quantas histórias em filmes e quadrinhos já nos deparamos que tratam de crianças ou jovens sendo obrigados a assumir a responsabilidade antes da hora certa por culpa de erro dos adultos. As melhores histórias geralmente são sobre isso. A geração mais nova é sempre aquela que deve limpar a merda feita pela geração anterior. Pesado. Mas também é verdade.


Aristóteles, Santo Agostinho, Confúcio e tantos outros grandes nomes já dissertaram e explicaram motivos e consequências das mentiras que o ser humano conta, mas de que adianta se tudo permanece igual?

Diversos psicólogos defendem que devemos ser sempre sinceros com os mais novos, por mais dura que seja a situação. O que não quer dizer que tenhamos que dar detalhes grotescos sobre tudo, mas tentar comunicar a verdade levando em consideração o nível de maturidade e entendimento de cada um. Cultivar mentiras sobre coisas importantes os transformará em adultos também imaturos, vivendo em suas próprias mentiras cultivadas.

Em O Lobo Solitário nos deparamos com uma cena extremamente forte, logo no primeiro mangá da série, onde Itto Ogami – o famoso Lobo Solitário – explica toda a situação trágica de sua família para Daigoro – seu filho recém-nascido – , e o faz escolher, engatinhando até a sua espada ou uma bola; se escolher a espada acompanhará seu pai em uma jornada assassina caminhando pelo inferno na Terra; e se escolher a bola, será morto pelo próprio pai para viver no outro mundo com a mãe. E todos sabemos qual foi a sua escolha, pois apesar de Ogami ser chamado de Lobo Solitário – devido a uma errônea tradução brasileira – ele nunca está sozinho, pois sua cria está sempre por perto, estimando-o como um deus.

Mas a questão ainda permanece: se até os deuses mentem, por que então devemos contar a verdade? Este é claramente um argumento forte a ser rebatido, por isso deixo aqui minha sincera admiração para a mangaká Kaori Ozaki por ter tratado com excelência sobre o tema.



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