Lutas Solitárias

Assim como manda o protocolo de novos tripulantes da Nave Bebop: meu nome é Pedro e estarei aqui, de tempos em tempos, contribuindo com informações recebidas de longas viagens ao vasto universo perdido dentro da minha cabeça. Espero que gostem!

Lobo Solitário, por Kazuo Koike e Goseki Kojima

O vento seco interrompe o silêncio que precede a batalha. Os protagonistas dessa luta encaram-se frente a frente com olhares profundos e decididos. Uma criança os observa a uma distância segura com olhos cheios de vida e curiosidade. Ela não teme pelo pai enfrentando silenciosamente um inimigo dentro de sua própria cabeça. O homem em pé saca a espada e o outro sentado desfere um golpe mortal. Os dois ao mesmo tempo. Poucos segundos depois há dois corpos sem vida estirados no chão, e uma criança pequena ainda observando com curiosidade, sem medo. A cena recomeça e ainda há dois homens frente a frente se encarando. Depois de um tempo eles se enfrentam novamente, e com apenas um golpe, um deles cai sem vida, enquanto o outro sobrevive com poucos ferimentos. E novamente eles estão se encarando, aguardando o momento certo para começar a batalha que decidirá o destino de ambos.

A cena acima, relato do saudoso mangá Lobo Solitário (Kazuo Koike e Goseki Kojima - Panini/Planet Manga), é um excelente exemplo das batalhas mentais e solitárias que diversos personagens têm diariamente ao longo de suas obras e universos. Seja o prelúdio imaginário de uma luta de vida ou morte, ou um evento traumático revivido na forma de um ataque de pânico, como o da jovem protagonista Sawako do recém-lançado Vitamin (Keiko Suenobu - JBC). Mas afinal, por que somos fascinados por personagens travando batalhas internas tão complexas?

A resposta é difícil, mas vamos começar por mais alguns exemplos: Shinji e Asuka de Neon Genesis Evangelion (para não citar todos os personagens da obra); Miyamoto Musashi de Vagabond; Motoko Kusanagi de Ghost In The Shell (esqueça o filme norte americano, por favor); Shouya e Nishimiya de Koe no Katachi (A Voz do Silêncio); Jintan de Ano Hana (lágrimas escorrem só de lembrar); o Papai de O Cão Que Guarda As Estrelas (mais lágrimas); Naho de Orange; Spike e Faye de Cowboy Bebop (seria até falta de respeito eu não citá-los)... E a lista continua.

Spike: Veja só esses olhos. Um deles é falso porque eu perdi em um acidente. Desde então, tenho visto o passado em um olho e o presente no outro. Eu acreditava que o que via não era toda a realidade.

Faye: Não me diga isso... você nunca me contou nada sobre si! Não me diga coisas assim agora!

Spike: Eu achei que estava vendo um sonho do qual nunca acordaria. Antes que eu desse por mim, o sonho já tinha acabado.

Faye: Minha memória voltou... Mas... não aconteceu nada de bom por isso. Não havia lugar para eu voltar. Só havia um único lugar para onde eu poderia voltar! Mas agora... aonde você vai? Porque você precisa ir? Você está me dizendo que vai simplesmente jogar a sua vida fora?

Spike: Eu não vou lá para morrer. Eu vou lá descobrir se estou realmente vivo. 

Seria a geração turbulenta dos autores a responsável por isso?

Talvez. Com exceção de Lobo Solitário, lançado em 1970, as outras obras são relativamente recentes, variando entre o fim dos anos 80 e atualmente. Muita coisa mudou de lá para cá, obviamente. A geração pós-guerra deu espaço a geração que presenciou o “boom tecnológico”, que aconteceu de forma desigual em diversos países com níveis variados de desenvolvimento. Mas a questão não é essa. Pois mesmo com essa divergência de tempo e desse salto enorme de tecnologia entre as gerações, a premissa permaneceu quase inalterada. Os meios mudaram, mas a essência prevaleceu. 

Almas perdidas a procura de um propósito, encarando a vida dia após dia sem saber o que esperar do amanhã, cuja única certeza é de que a morte está ao fim do caminho. Reflexo da nossa realidade? Em partes, sim. Temos exemplos recorrentes de ídolos consumidos pela depressão, crimes de ódio e guerras sem sentido. Coisas que pouco a pouco vão nos desanimando e derrubando nossas crenças por um mundo melhor. Todos os nossos medos acabam se refletindo na arte. Como nos mostrou Alan Moore com a piada do Palhaço Pagliacci em Watchmen (1986-1987): 

Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto.

O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo."

O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci."

Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.

Entretanto, temos também mais obras belas abordando o outro lado dessa solidão. Como é o exemplo de Solanin, do excepcional Inio Asano. Na obra, acompanhamos jovens na faixa dos 20 e poucos, descontentes com a vida, jogando tudo para o alto para viver seus sonhos e ignorando as consequências perante a sociedade atual. Cansados de viver sob os padrões impostos, eles resolvem buscar a felicidade nadando contra a correnteza. E isso se mostra possível, pois eles não precisam ir às ruas lutar por seus direitos, nem derramar sangue ou exigir liberdade de expressão. Os tempos mudaram (pelo menos em algumas sociedades). A geração é outra, porém, a luta solitária ainda está lá.

...Talvez eu tente nadar contra a correnteza. – Solanin, por Inio Asano

Vale também mencionar aqui o fim do mangá de Neon Genesis Evangelion que demorou 20 anos para ser publicado. O desfecho melancólico e surpreendente do filme The End of Evangelion (1997) já foi tão debatido e analisado que eu não tenho motivos para citar, entretanto o que mais me surpreendeu foi o desfecho do mangá. Fui pego de surpresa, e pela primeira vez, dentre todas as vezes em que assisti ou li a série, eu sorri ao terminar. Em menos de 20 anos, a ideia de incerteza, destruição e desesperança, cuja qual a série foi moldada, recebeu um golpe cirúrgico de esperança. Como se dissesse: mesmo que as coisas pareçam obscuras e perdidas, um novo dia vai nascer para melhorar tudo. E o melhor é que isso não foi um substituto para o antigo “fim”, mas apenas um complemento belo, reflexo de uma geração. 

Volume 14 (final) – Neon Genesis Evangelion, por Yoshiyuki Sadamoto

Geração que inclusive é tópico de muitas discussões e análises atuais. Os chamados Millennials, ou Geração Y (cuja qual eu me incluo). Pois é a geração que já está entrando e tomando conta o mercado de trabalho atual. É a geração que não mais separa a vida pessoal da vida profissional. É a geração que prefere ganhar menos e ter qualidade de vida, do que ser rica e infeliz. É a geração que está em busca constante de conhecimento, ao mesmo tempo que mantém esse conhecimento fora da mente, pois é facilmente encontrado na Internet. É a geração que não vê propósito em trabalhar com algo que não esteja de acordo com os seus valores pessoais. É a geração que deixa a geração passada de cabelo em pé e passando raiva pelo simples fato de rejeitar os padrões. Mas é a geração que vai definir o cenário para que a próxima possa surgir.

E ainda assim, como os que vieram antes de nós, somos fascinados por figuras fictícias, ou não, sozinhas e corrompidas por dentro. Lobos solitários que enfrentam desafios mortais diariamente para conseguir continuar. Seja na revolta e no abandono de um passado traumático em busca de vingança e sangue, ou se apoiando em outros que também querem arriscar tudo para serem felizes. Talvez seja isso que nos dê ânimo para continuar a lutar, acordando cedo para fazer coisas que parecem sem sentido. Talvez precisamos disso para saber que não estamos sozinhos. Talvez seja a natureza humana, quem sabe.

Talvez nunca conseguiremos responder a questão inicial. No que me diz respeito, assumo que não consigo, tampouco conheço quem consiga. Posso falar apenas sobre o que isso me faz sentir, pois como uma pessoa transitando para a fase adulta, ler e aprender como outros lidam com problemas internos me dá forças para acalmar meu interior. Mesmo que muitas vezes eu não consiga fazer isso. Pelo menos, faz com que eu não me sinta sozinho. O que não quer dizer que não devemos buscar ajuda profissional quando estamos com problemas, pois é altamente importante e necessário procurar ajuda. Porém, ver o problema através de outro ponto de vista pode ser a empatia necessária para ajudar o próximo, e assim, acabar ajudando a si mesmo. Pode ser a esperança que surge após os dias de tempestade.

Nada irá progredir enquanto você não puder se decidir. Sabe por que as pessoas se estressam com as coisas? Porque não há nenhuma resposta simples. – Solanin.

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